Entrevista de Eduardo Viveiros de Castro concedida a Fany Ricardo, Lívia Chede Almendary, Renato Sztutman, Rogerio Duarte do Pateo, Uirá Felipe Garcia, 26 de abril de 2006, no Instituto Socioambioental (ISA). A entrevista aparecerá em breve no Aconteceu, a grande publicação quinquenal coordenada pelo projeto Povos Indígenas no Brasil, o PIB-ISA.
Quem é Índio? O que define o pertencimento a uma comunidade indígena?
Começo por dizer que suspeito que nossa entrevista vai ter de abundar em aspas; não apenas ou principalmente aspas de citação, mas sobretudo aspas de distanciamento. Isso porque essa discussão — quem é índio? o que define o pertencimento? etc. — possui uma dimensão meio delirante ou alucinatória, como de resto toda discussão onde o ontológico e o jurídico entram em processo público de acasalamento. Costumam nascer monstros desse processo. Eles são pitorescos e relativamente inofensivos, desde que a gente não acredite demais neles. Em caso contrário, eles nos devoram. Donde as aspas agnósticas.
A questão que me foi colocada não pára de reaparecer desde que comecei a estudar antropologia, já logo vão 30 anos. Naquela distante época, estávamos sendo acuados pela geopolítica modernizadora da ditadura — era o final dos anos 1970 —, que nos queria enfiar goela abaixo o seu famoso projeto de emancipação. Esse projeto, associado como estava ao processo de ocupação induzida (invasão definitiva seria talvez uma expressão mais correta) da Amazônia, consistia na criação de um instrumento jurídico para discriminar quem era índio de quem não era índio. O propósito era emancipar, isto é, retirar da responsabilidade tutelar do Estado os índios que se teriam tornado não-índios, os índios que não eram mais índios, isto é, aqueles indivíduos indígenas que “já” não apresentassem “mais” os estigmas de indianidade estimados necessários para o reconhecimento de seu regime especial de cidadania (o respeito a esse regime, bem entendido, era e é outra coisa).
Foi em reação a esse projeto de desindianização jurídica que apareceram as Comissões Pró-Índio e as Anaís; foi também nesse contexto que se formaram ou consolidaram organizações como o CTI e o PIB, o “Projeto Povos Indígenas do Brasil” do CEDI (o PIB, como todos sabem, está na origem do ISA). Tudo isso surgiu desse movimento, que se constituiu precisamente em torno da questão de quem é índio — não para responder essa questão, mas para responder contra essa questão, pois ela não era uma questão, mas uma resposta, uma resposta que cabia “questionar”, ou seja, recusar, deslocar e subverter. “Quem vai responder a essa resposta?” pergunta o personagem de um filme de Herzog. Justamente: como responder à resposta que o Estado tomava como inquestionável em sua questão, a saber: que “índio” era um atributo determinável por inspeção e mencionável por ostensão, uma substância dotada de propriedades características, algo que se podia dizer o que é, e quem preenche os requisitos de tal qüididade — como responder a esta resposta? A se crer nela, tratar-se-ia apenas de mandar chamar os peritos e pedir que eles indicassem quem era e quem não era índio. Mas os peritos se recusaram a responder a tal resposta. Pelo menos inicialmente.
Note-se que, naquela época, a questão de saber quem era índio não se cristalizava em torno daquilo que se veio a chamar etnias emergentes, fenômeno bastante posterior: foram tais novas etnicidades, ao contrário, que surgiram da questão, respondendo a ela com uma resposta deslocada, isto é, inesperada. O problema da época, muito ao contrário de qualquer “emergência”, era a submergência das etnias, era o problema das etnias submergentes, daqueles coletivos que estavam seguindo, por força das circunstâncias (isto é um eufemismo), uma trajetória histórica de afastamento de suas referências indígenas, e de quem, com esse pretexto, o governo queria se livrar: “Esse pessoal não é mais índio, nós lavamos as mãos. Não temos nada a ver com isso. Liberem-se as terras deles para o mercado; deixe-se eles negociarem sua força de trabalho no mercado”.
Nosso objetivo político e teórico, como antropólogos, era estabelecer definitivamente — não o conseguimos; mas acho que um dia vamos chegar lá — que índio não é uma questão de cocar de pena, urucum e arco e flecha, algo de aparente e evidente nesse sentido estereotipificante, mas sim uma questão de “estado de espírito”. Um modo de ser e não um modo de aparecer. Na verdade, algo mais (ou menos) que um modo de ser: a indianidade designava para nós um certo modo de devir, algo essencialmente invisível mas nem por isso menos eficaz: um movimento infinitesimal incessante de diferenciação, não um estado massivo de “diferença” anteriorizada e estabilizada, isto é, uma identidade. (Um dia seria bom os antropólogos pararem de chamar identidade de diferença e vice-versa.) A nossa luta, portanto, era uma luta conceitual: nosso problema era fazer com que o “ainda” do juízo de senso comum “esse pessoal ainda é índio” (ou “não é mais índio”) não significasse um estado transitório ou uma etapa a ser vencida. A idéia, justamente, é a de que os índios “ainda” não tinham sido vencidos, nem jamais o seriam. Eles jamais acabar(i)am de ser índios, “ainda que”… Ou justamente porque. Em suma, a idéia era que “índio” não podia ser visto como uma etapa na marcha ascensional até o invejável estado de “branco” ou de “civilizado”.
Mas a filosofia da legislação brasileira era justamente essa: todos os índios “ainda” eram índios, no sentido de que um dia iriam, porque deviam, deixar de sê-lo. Mesmo os que estavam nus no mato, com seus proverbiais cocares de plumas, seus colares de contas, seus arcos, flechas, bordunas e zarabatanas, os índios com “contato intermitente” ou os “isolados” — mesmo esses ainda eram índios. Apenas ainda; ou seja, ainda, apenas, porque ainda não eram não-índios. O objetivo da política indigenista de Estado era gerenciar (e por que não? acelerar) um movimento visto como inexorável (e por que não? desejável): o célebre “processo histórico”, artigo de fé comum aos mais variados credos modernizadores, do positivismo ao marxismo. Tudo o que se “podia fazer” era garantir — isso para os mais bem-intencionados — que o “processo” não fosse demasiado brutal. Mas, de uma forma ou de outra, entendia-se que a almejada omelete nacional só poderia ser feita, bem, sabe-se como.
A luta contra o projeto de emancipação levou as pessoas que estavam do lado dos índios a se preocuparem com recenseamentos, levantamentos, com informação, com organização, comunicação e propaganda. Tratava-se, em suma, de tornar a questão visível. No fundo, não deixou de ser uma sorte os generais e coronéis da época terem tentado desindianizar uma porção de comunidades indígenas, pois isso, na verdade, terminou foi por reindianizá-las. A atabalhoada tentativa da ditadura de legiferar sobre a ontologia da indianidade “desinvisibilizou” os índios, que eram virtualmente inexistentes como atores políticos nas décadas de 60 e 70. Eles só apareciam, de vez em quando, em alguma uma reportagem colorida sobre o Xingu, geralmente como ilustração do admirável trabalho dos irmãos Villas-Boas (digo admirável sem nenhuma ironia; não deixava de ser bizarro, porém, o fato de que havia nessa época uma série de jornalistas especializados em embasbacar-se diante dos Villas-Boas e outros sertanistas). A grita suscitada com o projeto de emancipação resgatou a questão indígena do folclore de massa a que havia sido reduzida. Ela fez com que os próprios índios se dessem conta de que, se eles não tomassem cuidado, iam deixar de ser índios mesmo, e rapidinho. Graças a isso, então e enfim, os índios se tornaram muito mais visíveis como atores e agentes políticos no cenário nacional. Os primeiros líderes indígenas de expressão supra-local surgiram nesse contexto, como Mário Juruna e Aílton Krenak.
A questão de quem é ou não é índio reaparece agora, mas por outras razões. Algumas pessoas ligadas à questão indígena têm por vezes a impressão (ou pelo menos eu tenho a impressão de que elas têm a impressão) de que nós, índios e antropólogos, fomos um pouco vítimas de nosso próprio sucesso. Antigamente, muitos coletivos indígenas sentiam vergonha de sê-lo, e o governo tinha todo interesse em aproveitar essa vergonha inculcada sistemicamente, tirando as consequências jurídico-políticas, digamos assim, do eclipsamento histórico da face indígena de várias comunidades “camponesas” do país. Agora, ao contrário, “todo mundo quer ser índio” — dizemos, entre intrigados e orgulhosos; talvez mais intrigados que orgulhosos. Antigamente, os especialistas no “processo histórico” martelavam-nos os ouvidos com o dogma de que a “condição camponesa” (com opção de “proletarização”) era o devir histórico inexorável e portanto a verdade das sociedades indígenas, e que a descrição destas sociedades como entidades socioculturais autônomas supunha um “modelo naturalizado” e “a-histórico”. Mas eis que, pouco a pouco, os índios começam a reivindicar e terminam por obter o reconhecimento constitucional de um estatuto diferenciado permanente dentro da chamada “comunhão nacional”; eis que eles im¬plementam ambiciosos projetos de retradicionalização marcados por um autonomismo “culturalista” que, por instrumentalista e etnicizante, não é menos primordialista nem menos naturalizante; eis, por fim, que algumas comunidades rurais situadas nas áreas mais arquetipicamente “camponesas” do país se põem a reassumir sua condição indígena, em um processo de transfiguração étnica que é o exato inverso daquele anunciado, nos idos de 1970, por Darcy Ribeiro no célebre Os índios e a civilização, em profecia acreditada, com um retoque ou outro, pela imensa maioria dos antropólogos.
Com a constituição de 1988, o jogo terminou de virar completamente. De fato, houve uma inversão de 180 graus em relação ao projeto de emancipação. O propósito explícito deste projeto era emancipar indivíduos, mas seu verdadeiro objetivo, como se sabe, era o de “liberar” comunidades inteiras. Com a Constituição, consagrou-se o princípio de que as comunidades indígenas constituem-se em sujeitos coletivos de direitos igualmente coletivos. O “índio” deu lugar à “comunidade” (um dia vamos chegar ao “povo” – quem sabe), e assim o individual cedeu o passo ao relacional e ao transindividual, o que foi, desnecssário enfatizar, um passo gigantesco, mesmo que esse transindividual tenha precisado assumir a máscara do supra-individual para poder figurar na metafísica constitucional, a máscara da Comunidade como Super-Indivíduo. Mas de qualquer modo o individual não podia deixar de ceder ao relacional, uma vez que a referência indígena não é um atributo individual mas um movimento coletivo, e que a “identidade indígena” não é “relacional” apenas “em contraste” com identidades não-indígenas, mas relacional (logo, não é uma “identidade”), antes de mais nada, porque constitui coletivos transindividuais intra-referenciados e intra-diferenciados. Há indivíduos indígenas porque eles são membros de comunidades indígenas, e não o inverso.
Pois bem. Foi a partir desse momento que acelerou-se a “emergência” de comunidades indígenas que estavam submersas por várias razões: porque tinham sido ensinadas a não dizer mais que eram indígenas, ou ensinadas a dizer que não eram mais indígenas; porque tinham sido colocadas em um liquidificador político-religioso, um moedor cultural que misturara etnias, línguas, povos, regiões e religiões, para produzir uma massa homogênea capaz de servir de “população”, isto é, de sujeito (no sentido de súdito) do Estado. Como se sabe, as antigas missões que estão na origem de tantas cidades, vilas, vilarejos e arraiais do interior do Brasil foram os lugares privilegiados dessa fabricação do componente indígena do “povo brasileiro”, ao sintetizar os célebres índios genéricos, os índios de aldeamento, catecúmenos do sacramento estatal da transsubstanciação étnica: a comunhão nacional… A Constituição de 1988 interrompeu juridicamente (ideologicamente) um projeto secular de desindianização, ao reconhecer que ele não se tinha completado. E foi assim que as comunidades em processo de distanciamento da referência indígena começaram a perceber que voltar a “ser” índio — isto é, voltar a virar índio, retomar o processo incessante de virar índio — podia ser uma coisa interessante. Converter, reverter, perverter ou subverter (como se queira) o dispositivo de sujeição armado desde a Conquista de modo a torná-lo dispositivo de subjetivação; deixar de sofrer a própria indianidade e passar a gozá-la. Uma gigantesca ab-reação coletiva, para usarmos velhos termos psicanalíticos. Uma carnavalização étnica. O retorno do recalcado nacional.
A partir daquele momento — que é ainda o momento em que estamos vivendo — e daquilo que ganhou um ímpeto irresistível a partir dele, a saber, a re-etnização progressiva do povo brasileiro, a questão “quem é índio?” deixou de se colocar em vista do fim mais ou menos inconfessável que o Estado se colocava, o de violentar os direitos das comunidades e das pessoas indígenas. Ela passou a ser um problema daqueles que se pensam do (e que pensam ao) lado dos índios, bem como um problema dos “próprios” índios.
Qual o problema hoje? Isto é, como aparece o problema hoje? Ele aparece como sendo o de evitar a banalização da idéia e do rótulo de “índio”. A preocupação é clara e simples: bem, se “todo mundo”ou “qualquer um” (qualquer coletivo) começar a se chamar de índio, isso pode vir a prejudicar os “próprios” índios. A condição de indígena, condição jurídica e ideológica, pode vir a “perder o sentido”. Esse é um medo inteiramente legítimo. Não compartilho dele, mas o acho inteiramente legítimo, natural, compreensível, como acho legítimo, natural etc. o medo de assombração. Enfim… O raciocínio é: se, de repente, nós tivermos que “reconhecer como tal” toda comunidade que se reivindica como indígena perante os distribuidores autorizados de identidade (o Estado), aí quem vai acabar se dando mal são os Yanomami, os Tucano, os Xavante, todos os “índios de verdade”, em suma. Poderá haver uma desvalorização da noção de índio, um barateamento dessa identidade. Se, antes, ser índio custava caro (para evocar um artigo pioneiro de Roberto DaMatta: “Quanto custa ser índio no Brasil?”), e custava caro, é claro, para quem o era, hoje ser índio estaria ficando barato demais. Agora é fácil ser índio; basta dizer… E daí ninguém, principalmente o Estado, vai acabar comprando essa.
Não acredito nisso. Muito mal comparando — e digo mal porque a comparação arrisca reavivar velhos e grotescos estereótipos —, pode-se dizer que ser ou virar índio é como aquilo que Lacan dizia sobre os loucos: não é louco quem quer. Nem quem simplesmente o diz. Pois só é índio quem se garante.
Aí entra a idéia do antropólogo como a pessoa que vai legitimar essa identidade
Pois é: que vai, justamente, garantir essa identidade. Só que não garante; só o índio é quem (se) garante. O papel dos antropólogos nessa questão é um tantinho confuso. A comunidade antropológica, por via de suas ABAs e entidades similares, desempenhou um papel fundamental na decisão de botar o pé na porta e impedir o projeto de emancipação, decisão tomada em conjunto com outros advogados da causa e, naturalmente, com os índios. Eu acho que esse momento, em 1978, foi um dos claros e raros momentos em que, de fato, os antropólogos fizeram uma diferença. Uma tremenda diferença. Não foi um antropólogo ou dois, como foi Darcy Ribeiro no tempo do Estatuto do Índio, ou os irmãos Vilas Boas – que por vezes foram chamados de antropólogos, durante a criação do Parque do Xingu –, mas os antropólogos “como um todo”, enquanto coletividade, que fizeram uma tremenda diferença nesse momento. E o mesmo se diga da mobilização em torno da Constituinte de 1988. Depois, minha impressão é que a coisa mudou um pouco. “Os antropólogos” deixou de ser um plural coletivo, e passou a um plural distributivo: “os antropólogos” são aquelas pessoas que fazem laudo, os peritos. Peritos em identidade. Alheia. Bem, nem todos.
Em todo o processo de juridificação da questão “quem é índio?”, isto é, de decidir como e onde aplicar os artigos da Constituição de 1988, a antropologia conseguiu, a meu ver com toda a justiça, este ganho político de se tornar um interlocutor legítimo do aparelho de estado, parte necessária nos processos jurídicos de garantia e de oficialização das demarcações de terra, entre outras coisas. Mas com isso o antropólogo (releve-se-me o masculino) passou também a ter uma atribuição que, a meu ver, é complicada (releve-se-me o eufemismo). Ele passou a ter o poder de discriminar quem é índio e quem não é índio, ou antes, a prerrogativa de pronunciar-se com autoridade sobre a matéria, de modo a instruir a instância que tem realmente tal poder de discriminação, o Poder Judiciário. Ainda que o antropólogo diga sempre ou quase sempre que fulano é índio, que aqueles caboclos da Pedra Preta são, de fato, índios, pouco importa. O problema é que o antropólogo está “em posição de” dizer quem não é índio, dizer que alguém não é índio. E pode fazê-lo.
Mas aí ele vai ter de mudar de profissão…
Muito provavelmente. E de cidade também. Mas de qualquer maneira, o fato de se sentir autorizado a responder já situou, de saída, o antropólogo em algum lugar entre o juiz (afinal, o perito é aquele que diz sim ou não, que constata-atesta que alguém é ou não é alguma coisa) e o advogado de defesa (aquele que diz, mesmo que não acredite muito nisso: “é sim, é índio; meu cliente é índio e vou prová-lo”). É como se existisse um promotor genérico que diz “o réu não é índio, sua pretensa identidade indígena é uma falsa identidade”; e você vem com o advogado de defesa que vai dizer “não, ele é índio sim, sua identidade é legítima e autêntica”.
Tudo ótimo, normal e democrático. Mas a questão continua colocada nos termos de sempre: continua uma questão de se dizer quem é o quê. É sem dúvida difícil ignorar a questão, uma vez que o Estado e seu arcabouço jurídico-legal funcionam como moinhos produtores de substâncias, categorias, papéis, funções, sujeitos, titulares desse ou daquele direito etc. O que não é carimbado pelos oficiais competentes não existe — não existe porque foi produzido fora das normas e padrões — não recebe selo de qualidade. O que não está nos autos etc. Lei é lei etc. E afinal de contas, é preciso administrar a nação; é preciso gerir a população, e o território. Como se diz.
Mas há quem diga que o papel do antropólogo não é, nunca foi e jamais deveria ser o de dizer quem é índio e quem não é índio. Que isso é coisa de inspetor da alfândega, de fiscal da identidade alheia. Esta é uma posição pessoal minha (e como seria outra coisa, afinal?), consequência da dificuldade que sinto de enunciar juízos do tipo “esses caras são índios” ou “esses caras não são índios”. O problema, para mim, é a legitimidade da pergunta. Não aceito essa pergunta como sendo uma pergunta antropológica. Ela não é uma pergunta antropológica, é uma pergunta jurídica. Oh não, ela é uma pergunta essencialmente, fundamentalmente, visceralmente política, obtemperarão meus argutos colegas. Mas é claro que é uma pergunta política, replicarei. E minha resposta política a ela é dizer que ela não é uma questão antropológica, mas uma questão jurídica, e de que é aqui que se distingue o antropólogo do jurista: no tipo de pergunta que eles têm respectivamente “o direito” de fazer, e portanto de responder.
Naturalmente que o antropólogo também pode responder, ou ajudar a responder, perguntas jurídicas, e que ele é por vezes compelido a se colocar imaginariamente (ou taticamente) na posição de Legislador, quando não na de Conselheiro do Príncipe. Ainda que… Bem, em algumas situações ele é obrigado mesmo a responder, por exemplo quando as perguntas são feita em relação ao povo junto a quem ele trabalha, às pessoas com as quais ele tem relações reais, os membros da comunidade ou comunidades das quais ele antropólogo é parte componente e interessada, mesmo que uma parte à parte. Mesmo que seja uma parte separada, que mora longe, ele é sempre parte da comunidade. Querendo ou não. Pode ser uma parte renegada, uma parte traidora, uma parte distante, uma parte longíqua, mas é parte. E enquanto tal, é claro que ele tem que responder às perguntas que o Estado lhe “propõe”, porque ele está lá para isso mesmo, para entrar na briga. Mas não devemos por isso imaginar que todas as questões com que o antropólogo se defronta sejam por isso questões antropológicas, questões que ele naturalmente pode e deve responder, deve aceitar responder e deve se responsabilizar por isso. Responsabilizar-se, isto é, responder pela resposta. Só que acho que ninguém tem o direito de dizer quem é ou quem não é índio, se não se diz, porque é, índio ele próprio. E é justamente por isso que o antropólogo só pode responder, se lhe perguntam se o povo ou comunidade de que ele escolheu ser parte é, de fato, indígena, pela afirmativa. Essa resposta afirmativa não responde à pergunta que lhe foi feita.
Em suma, para o antropólogo, índio é como freguês — sempre tem razão. O antropólogo não está lá para arbitrar se as pessoas que lhe hospedam e cuja vida ele escarafuncha têm ou não razão no que dizem. Ele está lá para entender como é que aquilo que elas estão dizendo se conecta com outras coisas que elas também dizem ou disseram, e assim por diante. Ao antropólogo não somente não cabe decidir o que é uma comunidade indígena, que tipo de coletivo pode ser chamado de comunidade indígena, como cabe, muito ao contrário, mostrar que esse tipo de problema é indecidível.
E a responsabilidade social diante dos não-índios?
Permitam-me incorrer em um exagero heurístico. Eu direi que no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é.
Tem que provar que não é índio?
Sim; acho que o problema é “provar” quem não é índio no Brasil. Resposta política à resposta (isto é, à pergunta) política que se faz ao antropólogo. Entendo assim, para começar, que a questão de quem é ou quem não é índio não é uma questão de “cultura”, isto é, uma questão respondível mediante a inspeção dos conteúdos culturais da vida de um coletivo. Não estou negando, obviamente, que haja um fundo cultural ameríndio muito vivo e muito real; um fundo, ou por outra, uma forma, uma estrutura ou conjunto de estruturas (para usarmos uma palavra fora de moda) conceituais que remontam à América pré-colombiana. O que eu estou dizendo é que a relação com esse fundo cultural não é uma relação nem necessária nem suficiente para se definir o que é índio. Porque uma vez que se recusa a pergunta, o fundo cultural não pode mais servir para definir pertenças e inclusões em classes identitárias. Esse fundo cultural é um elemento da história do país, do continente, das três Américas. Os coletivos humanos contemporâneos espalhados por nosso continente se orientam de modos variados em relação a esse fundo; nenhum desses modos é redutível ao modo emanativo, pois um coletivo humano não é jamais a encarnação de uma cultura; não porque seja mais que isso, mas porque é outra coisa.
E assim eu inverto a questão. O problema é quem não é índio. (Essa afirmação se insere em uma teoria do minoritário que devo a outrem, e que não cabe expor aqui. Mas para bom entendedor, eis como posso afirmar que no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é.) Darcy Ribeiro, aliás – não sei se ele diz exatamente isso, não sou bom leitor dele –, insistiu sobre isso, sobre o fato de que o “povo brasileiro” é muito mais indígena do que se suspeita ou supõe. (Não estou com isso, desnecessário dizer, minimizando o aporte óbvio e gigantesco das populações africanas trazidas à força para cá.) O homem livre da ordem escravocrata, para usar a linguagem da Maria Silvia Carvalho Franco, é um índio. O caipira é um índio, o caiçara é um índio, o caboclo é um índio, o camponês do interior do nordeste é um índio. Índio em que sentido? Ele é um índio genético, para começar, apesar disso não ter a menor importância.
Genético e genérico
A mesma coisa. Os pesquisadores da UFMG que fizeram um levantamento do aporte genético ameríndio na população nacional descobriram que ele é muito maior do que se imaginava. Coisa de 33%, creio. Afinal de contas, então, o fluxo gênico ameríndio continua a correr solto. Interessante, mas isso não tem a menor importância, exceto pelo que pode ajudar a esclarecer sobre a história “do Brasil”. Digo que os coletivos caiçaras, caboclos, camponeses e índios são índios (e não 33% índios) no sentido de que são o produto de uma história, uma história que é a história de um trabalho sistemático de destruição cultural, de sujeição política, de “exclusão social” (ou pior, de “inclusão social”), trabalho esse que é propriamente interminável. Não é possível fazer todos os brasileiros deixarem de ser índios completamente. Por mais bem sucedido que tenha sido ou esteja sendo o processo de desindianização levado a cabo pela catequização, pela missionarização, pela modernização, pela cidadanização, não dá para zerar a história e suprimir toda a memória, porque os coletivos humanos existem crucial e eminentemente no momento de sua reprodução, na passagem intergeracional daquele modo relacional que “é” o coletivo, e a menos que essas comunidades sejam fisicamente exterminadas, expatriadas, deportadas, é muito difícil destruí-las totalmente. E ainda quando o foram, quando foram reduzidas a seus componentes individuais, extraídos das relacões que os constituíam, como aconteceu com os escravos africanos, esses componentes reinventam uma cultura e um modo de vida — um mundo relacional que, por constrangido que tenha sido pelas condições adversas onde vicejou, jamais deixou de ser uma expressão da vida humana exatamente como qualquer outra. Não há culturas inautênticas, pois não há culturas autênticas. Não há, aliás, índios autênticos. Índios, brancos, afro-descendentes, ou quem quer que seja — pois autêntico não é uma coisa que os humanos sejam. Ou talvez seja uma coisa que só os brancos podem ser (pior para eles). A autenticidade é uma autêntica invenção da metafísica ocidental, ou mesmo mais que isso — ela é seu fundamento, entenda-se, é o conceito mesmo de fundamento, conceito arqui-metafísico. Só o fundamento é completamente autêntico; só o autêntico pode ser completamente fundamento. Pois o Autêntico é o avatar do Ser, uma das máscaras utilizada pelo Ser no exercício de suas funções monárquicas dentro da onto-teo-antropologia dos brancos. Que diabo teriam os índios a ver com isso?
Há uns meses atrás, nós vimos aquela declaração catastrófica do Mércio que disse que o judiciário teria que resolver esse problema
Essa história é, digamos assim, muito instrutiva. O presidente da Funai de hoje está voltando a falar como falavam (como eram feitos falar por seus chefes) os presidentes da Funai de ontem. Só que agora não é mais porque tem muito índio que “não é mais índio”, mas porque tem muito branco que “nunca foi índio” querendo “virar índio”. Quando seria melhor dizer: tem muito branco, que nunca foi muito branco porque já foi índio, querendo virar índio de novo.
Mas isso é sentido como um escândalo, no fundo; é o mundo de cabeça para baixo e de trás para a frente. É como se não fosse possível — possível no sentido lógico, não apenas no sentido moral — querer virar índio, só se pode querer deixar de sê-lo. É como se querer virar índio fosse uma contradição em termos. De qualquer modo, já tem índio demais por aqui; e aliás, os índios têm terras demais. O Brasil ficaria melhor e maior com menos índios: só com os que existem hoje, por exemplo. Sejamos liberais: não é preciso matar ninguém; os índios que temos são bons; são mesmo necessários. Mas sobretudo, eles são suficientes. Vamos fechar a porteira. Vamos fazer uma escala. Índio mesmo é só índio isolado; voltemos às famosas categorias, cuja intenção de marcar etapas temporais é evidente: isolado, contato intermitente, contato permanente e integrado. Onde vai passar o corte? Na cara de quem vai se fechar a porteira? Integrado já não é mais índio; fácil essa. E os de contato intermitente? Que frequência de intermitência faz de um intermitente um integrado? Dezesseis horas por dia? Bem, o índio isolado ninguém tem coragem de dizer que não é mais índio, sobretudo porque ele nem é índio ainda. Ele não sabe que é índio; não foi contatado pela Funai ou coisa do gênero. Ou seja, primeiro se tem que virar índio para depois se deixar de ser. Por que então não se pode querer virar de novo depois de ter deixado de ser? Ou quem sabe voltar a nunca ter sido, mas nem por isso insistindo menos em querer ser?
O Mércio está dizendo a mesma coisa que os governos da ditadura. Em essência, ele está dizendo que tem índio demais. Essa coisa de fechar a lista aconteceu nos Estados Unidos, por exemplo. Em um dado momento definiram arbitrariamente quem eram os índios. Só que lá, sendo aquele o país que é, os índios da lista vão ser índios para sempre. E não obstante, essa lista nunca fecha completamente. Não faz muito tempo que certas comunidades reivindicaram uma indianidade deixada de fora da lista, e outras continuam a fazê-lo.. Tome-se o célebre caso dos Lumbee. Coisa muito parecida com o que ocorre aqui.
Enfim, tenho a impressão de que é isso que o Mércio quer fazer. Uma lista, para poder dizer depois: a lista fechou. Uma lista para isso. Note-se o arbitrário quase burlesco de uma lista como essa. Por que parar agora e não no mês que vem? Por que não parou antes? Naturalmente, isso vai provocar uma corrida — acelerar uma corrida que já está acontecendo — para se registrar como índio. O correto seria publicar um edital. Abrir concorrência pública. Marcar prazo.
A declaração de Mércio Gomes — supondo-se que ele tenha dito o que se escreveu que ele disse; mas o povo inventa muito… — é completamente absurda. A Funai é (ou deveria ser) a representante, no sentido de defensora, das populações indígenas. Dali seria o último lugar de onde se poderia esperar ser emitido um juízo como esse. Como o presidente do chamado órgão tutelar (nem sei se a Funai “ainda é” isso) pode dizer tal coisa?
Bem, estou apenas fingindo surpresa — infelizmente. A declaração do Mércio foi a de um estadista. Um pequeno estadista, naturalmente. Com efeito e a rigor, definir quem é ou não é índio não é um problema dos índios nem de suas comunidades. Ele é um problema posto e resolvido pelo Estado, instância que trata os coletivos sob sua tutela (no sentido lato, isto é, político) dessa forma: quem é o quê, quem não é o quê, é preciso favorecer isso, desencorajar aquilo; punir, premiar, induzir, reduzir, gerir, dispor. Os antropólogos temos que nos posicionar frontalmente contra isso, recusando (“na medida do possível e dentro dos limites da lei”) essa questão como legítima. Temos de trabalhar nesse contexto, pois esse é o contexto que está aí, mas sem com isso ter que trabalhar por este contexto, sem ter de vender nossa alma, e sem ter de acreditar na história da carochinha que eles estão contando, a história de que índio é uma entidade contábil, é algo que se pode contar.
O problema é confundir isso com etnia e etnônimo
Claro. Bem, vamos falar então da experiência ficcional a que me dediquei, ao propor uma definição “jurídica” de “índio”. Tal definição (ver abaixo, em itálico), insisto, é um exercício escolar. Não se trata de um projeto de lei (imaginem), mas de uma tentativa despretensiosa de resposta a colegas que acham que a questão de saber quem e o que é índio pode ter uma resposta outra que aquela que é dada praticamente pelos índios, passados, presentes e futuros.
“Índio” é qualquer membro de uma comunidade indígena, reconhecido por ela como tal. “Comunidade indígena” é toda comunidade fundada nas relações de parentesco ou vizinhança entre seus membros, que mantém laços histórico-culturais com as organizações sociais indígenas pré-colombianas.
1. As relações de parentesco ou vizinhança constitutivas da comunidade incluem as relações de afinidade, de filiação adotiva, de parentesco ritual ou religioso, e, mais geralmente, definem-se nos termos da concepção dos vínculos interpessoais fundamentais própria da comunidade em questão.
2. Os laços histórico-culturais com as organizações sociais pré-colombianas compreendem dimensões históricas, culturais e sociopolíticas, a saber:
(a) A continuidade da presente implantação territorial da comunidade em relação à situação existente no período pré-colombiano. Tal continuidade inclui, em particular, a derivação da situação presente a partir de determinações ou contingências impostas pelos poderes coloniais ou nacionais no passado, tais como migrações forçadas, descimentos, reduções, aldeamentos e demais medidas de assimilação e oclusão étnicas;
(b) A orientação positiva e ativa do grupo face a discursos e práticas comunitários derivados do fundo cultural ameríndio, e concebidos como patrimônio relevante do grupo. Em vista dos processos de destruição, redução e oclusão cultural associados à situação evocada no item anterior, tais discursos e práticas não são necessariamente aqueles específicos da área cultural (no sentido histórico-etnológico) onde se acha hoje a comunidade.
(c) A decisão, seja ela manifesta ou simplesmente presumida, da comunidade de se constituir como entidade socialmente diferenciada dentro da comunhão nacional, com autonomia para estatuir e deliberar sobre sua composição (modos de recrutamento e critérios de inclusão de seus membros) e negócios internos (governança comunitária, formas de ocupação do território, regime de intercâmbio com a sociedade envolvente), bem como de definir suas modalidades próprias de reprodução simbólica e material.
Antes de comentar essa definição por assim dizer conjetural, quero resumir em algumas frases obscuras a “linha de raciocínio” que utilizei até aqui e que não vou utilizar daqui para frente, mas que me parece a única tecnicamente correta. Ela não deixa de estar contemplada, de certo (meta-)modo, na terceira dimensão da definição ficcional. Direi então que índio realmente não é isso que eu digo que é nesse texto pseudo-legislativo que escrevi. E não é isso, porque os enunciados de indianidade são enunciados performativos e não enunciados constativos, dependendo portanto de condições de felicidade e não de condições de verdade (no sentido de correspondência com um estado de coisas). Mas, e este é o ponto, as condições antropológicas de felicidade de tal enunciado não são dadas por terceiros. Sobretudo, não são nem podem ser dadas pelo Estado, o Terceiro por excelência. A indianidade é tautegórica; ela cria sua própria referência. Índios são aqueles que “representam a si mesmos”, no sentido que Roy Wagner dá a esta expressão (cf. The invention of culture), sentido esse que não tem nada a ver com identidade; e nada a ver, tampouco, com representação, como está indicado na formulação mesma, deliberadamente paradoxal, da expressão. “Representar a si mesmo” é aquilo que faz uma Singularidade, e aquilo que uma Singularidade faz. Sigamos adiante.
O objeto da definição imaginária que estamos comentando é isso que chamei de “comunidade indígena”. A expressão foi escolhida por ser a mais vaga possível. Na verdade não gosto demais da palavra “comunidade”, canonizada pela teologia da libertação e aproveitada algo hipocritamente pelos governos pós-ditadura. Mas no contexto que me dei, ela se justifica por impedir palavras mais pontiagudas e cheias de arestas, como etnia, tribo, sociedade, nação. A palavra “coletivo” talvez fosse a mais adequada, mas ela é muito especializada, pertence ao universo de uma antropologia mais recente, e os problemas que ela pretende resolver são outros (notadamente, como contornar-ignorar a oposição natureza/sociedade). Não é disso que se trata aqui. Então, mantenhamos comunidade.
Em seguida, cometo cometo a húbris de escrever: “comunidade indígena é…”. Exercício totalmente parnasiano, repito. Pois eu, no fundo do meu coração, não estou nem aí para saber quem ou o quê é comunidade indígena, ou não é. Se, “enquanto antropólogo”, eu terminar por esbarrar em um lugar onde, por acaso, encontram-se índios – com o sentido que a palavra tem na linguagem comum, que é vago e concreto ao mesmo tempo –, isso não me obriga a, nem decorre de, nenhuma definição técnica. Quando eu fui estudar os Araweté eu pensava: “eu quero conhecer uns sujeitos que morem no mato e que usem arco e flecha”. Pois.
O ponto realmente fundamental na escolha da “comunidade” como sujeito da minha definição fictícia é que o adjetivo “índio” não designa uma condicão individual, mas especifica um certo tipo de coletivo. Nesse sentido não existem índios, apenas comunidades, redes (d)e relações que se podem chamar indígenas. Não há como determinar quem “é índio” independentemente do trabalho de auto-determinação realizado pelas comunidades indígenas, isto é, aquelas que são o objeto do presente exercício definicional, ou melhor, meta-definicional. O objeto e o objetivo da antropologia, diga-se de passagem, é a elucidação das condições de auto-determinação ontológica do outro. E ponto.
Enfim, voltando ao texto: comunidade indígena é toda comunidade fundada em relações de parentesco ou vizinhança entre seus membros. O “ou” aqui é evidentemente inclusivo: “seja parentesco, seja vizinhança”. Este é um ponto importante, porque ele impede uma definição genética ou genealógica de comunidade. A idéia de vizinhança serve para sublinhar que “comunidade” não é uma realidade genética; por outro lado, colocar “relações de parentesco” na definição permite que se contemplem possíveis dimensões translocais dessa “comunidade”. Em outras palavras, a comunidade que tenho em mente é ou pode ser uma realidade temporal tanto quanto espacial. Em suma, “parentesco” e “território”, para falarmos como Morgan, são tomados aqui como princípios alternativos ou simultâneos de constituição de uma comunidade. Convém sublinhar o caráter não-geométrico desse território: a inscrição espacial da comunidade não precisa ser, por exemplo, concentrada ou contínua, podendo ao contrário ser dispersa e descontínua. Então, (1) comunidade fundada em relações de parentesco ou vizinhança, e (2) que mantém laços históricos ou culturais com as organizações sociais indígenas pré-colombianas.
Introduzo a esta altura a primeira especificação: 1.1. as relações de parentesco ou vizinhança, constitutivas da comunidade, incluem relações de afinidade, de filiação adotiva, de parentesco ritual ou religioso – quer dizer, compadrio – e, mais geralmente, se definem em termos das concepções dos vínculos interpessoais fundamentais próprios da comunidade em questão. Ou seja, em bom português, é parente quem os índio acham que é parente, e não quem o Instituto Oswaldo Cruz ou sei lá quem vai dizer que é a partir de um exame de sangue ou um teste de ADN. Parentesco inclui aqui a afinidade. Isso é básico, em primeiro lugar, porque as relações de afinidade são, em muitas culturas indígenas, transmissíveis intergeneracionalmente, exatamente como as relações de consanguinidade (falo dos sistemas de parentesco ditos “elementares”); em segundo lugar porque, de um modo geral, a etnologia vem mostrando que a afinidade é o arcabouço político e a linguagem ideológica dominante nas comunidades ameríndias. E por fim, porque há muitos casamentos interétnicos nos mundos indígenas de hoje. Como você cortaria uma família no meio quando o homem é branco e a mulher é índia, por exemplo? Se a comunidade acha que o marido é membro da comunidade, ele é índio, sem mais. No que me concerne, se o marido for um norueguês, mas casou com a índia Potira, e o pai da índia Potira está de acordo, esse norueguês é índio. Assim, as relações de parentesco e de vizinhança incluem laços variados e, sobretudo, se definem em termos da atualização dos vínculos interpessoais fundamentais próprios da comunidade em questão. Pode não ser o sangue. Pode ser a comensalidade, a vizinhança; isso fica em aberto. Cada comunidade terá uma concepção específica do que são esses “vínculos interpessoais fundamentais”, e são essas concepções que devem ser “definitivas” das comunidades, não as nossas.
Os laços histórico-culturais com as organizações sociais pré-colombianas são evidentemente importantes, pois é bobagem imaginar que se pode definir “índio” na base do preguiçoso princípio sub-relativista segundo o qual “índio é qualquer um que achar que é”. Não é qualquer um; e não basta achar ou dizer; só é índio, como eu disse, quem se garante. É necessário trazer para a definição, portanto, a questão de que existia um mundo social pré-colombiano, e que há uma porção de gente no Brasil atual que está ligada a ele. O que quer dizer esse “ligada” é que é o problema, naturalmente. Os laços histórico-culturais com as organizações sociais pré-colombianas compreendem dimensões históricas, culturais e sociopolíticas. Não tem de haver uma coincidência dessas três dimensões. Eu diria que se uma delas está presente, está “resolvido” o “problema”. Essas condições dimensionais são condições suficientes, cada uma por si. E nenhuma delas é necessária. Quais são tais condições? Uma delas é a continuidade da implantação territorial da comunidade em relação à situação existente no período pré-colombiano. É a idéia do território tradicional, da Terra imemorial. É impossível não reconhecer a importância disso. Como eu disse, tal continuidade é suficiente, mas não é necessária. Pois não menos suficiente, em particular, é a disposição em conceber a situação presente da comunidade a partir de determinações e de contingências impostas pelos poderes coloniais ou nacionais no passado, tais como migrações forçadas, descimentos, reduções, aldeamentos e demais medidas de assimilação, oclusão e repressão étnicas. Em suma, o índio aldeado, o índio que foi “misturado”, que os missionários e bandeirantes desceram, não pode ser culpado de ter perdido suas referências territoriais originais. Essas comunidades vão deixar de ser indígenas porque seus membros foram trazidos à força de regiões diferentes? — “Bem…desculpem, mas os jesuítas misturaram vocês com índios de todos os lugares”. — “E daí (responde o índio), a culpa é minha? Eu vou ser punido por causa disso? Quero minha terra de volta.” Mas já tem muito branco, há muito tempo, nessa terra? — Então vamos negociar. A antiguidade da expropriação não a faz deixar de sê-lo. O único prazo de validade é a memória.
A outra coisa é a orientação positiva e ativa dos membros do grupo – este é o segundo “critério” – face a discursos e práticas comunitários derivados do fundo cultural ameríndio, e concebidos como patrimônio coletivo relevante. Se tomarmos o argumento pela outra ponta, isso quer dizer: ninguém é obrigado a ser índio. Os membros de uma comunidade podem decidir: “nós somos índios, mas não queremos ser; de qualquer maneira, estamos virando brancos.” A noção de “virar branco”, como se sabe, está presente em vários mundos indígenas. Ela não quer dizer necessariamente o que nós achamos que quer dizer; ao contrário, o que ela quer dizer é justamente um dos problemas mais complexos com que se defrontam os antropólogos. Há todo um complexo sistema de pressuposições recíprocas em jogo, com pelo menos quatro posições ou orientações típicas: virar branco, virar índio, pacificar o branco, pacificar o índio. Os brancos “pacificam” os índios, os “índios” pacificam os brancos, os índios dizem que estão “virando branco”, há “muitos brancos” querendo virar índio. Uma situação muito interessante. Os brancos lamentam que há vários brancos querendo virar índio e ao mesmo tempo que há vários índios querendo virar branco. Os Yanomami estão querendo virar branco, e os caboclos lá da Pedra Furada, no sertão do Cariri ou sei lá onde, estão querendo virar índio. O mundo está de cabeça para baixo. Os Yanomami deviam continuar a querer ser índios (alguém precisa continuar a querer ser; alguns índios são necessários), e os caboclos deveriam continuar a querer ser brancos, cada vez mais brancos — cidadania, que beleza.
Na verdade essas duas coisas são muito mais complicadas do que se imagina. Os Yanomami querem virar branco, mas isso não é exatamente o que se imagina que seja, e os caboclos lá de não sei onde querem virar índio, mas também não é como se imagina que eles querem que seja. Cabe a nós antropólogos ver toda a complexidade que está por trás de assertivas tão banais como “nós estamos virando branco.” Este é um discurso comum em muitas comunidades indígenas: “nós estamos virando branco”, “os índios estão acabando”. O que parece, entretanto, é que não se acaba nunca de virar branco; e que os índios não acabam de acabar; é preciso continuar a ser índio para poder se continuar a virar branco. E parece também que virar branco à moda dos índios não é exatamente a mesma coisa que virar índio à moda dos brancos. Até que se vire.
Enfim, retomando: “deve” haver uma orientação positiva e ativa do grupo em relação aos produtos característicos da vida comunitária. Rituais, mitos, configurações relacionais mais ou menos reificadas, a própria comunidade enquanto ponto de orientação, pólo de territorialização, e assim por diante. Em vista dos processos de destruição, de redução e de oclusão cultural associados à situação social evocada no item anterior (reduções, descimentos, escravização, catequização etc), tais discursos e práticas não são aqueles específicos da área cultural, no sentido histórico-etnológico, onde hoje se acha a comunidade. Ou seja, os índios podem ser índios e terem uma orientação positiva e ativa em relação ao fundo cultural ameríndio, mas um fundo cultural ameríndio que remete a uma outra região, simplesmente por que a deles foi destroçada. Então, se os caboclos da Pedra Furada importam um xamã wajãpi para ensinar toré, qual o problema? Os antigos romanos importavam professores de grego para ensinar filosofia grega para eles, e ninguém dizia com isso que os romanos estavam deixando de ser romanos. Ou dizia (alguns romanos de fato diziam), mas nem por isso eles deixaram de ser romanos.
Como é o caso dos Tupinambá de Olivença, que chamaram um xamã guarani para ensinar um pagé deles
Exatamente. Tem uma parábola que Marshall Sahlins conta em seu livrinho Esperando Foucault, que é mais ou menos assim: Há um lugar no planeta, no extremo ocidente, onde vive um povo muito interessante, e que há cerca de uns seiscentos anos atrás se achava inteiramente desprovido de cultura. Ele havia perdido toda a sua cultura ancestral ao cabo de inumeráveis invasões de bárbaros, de sucessivas catástrofes, pestes, epidemias, mudanças climáticas. A partir de certo momento, porém, esse povo começou a se reinventar, com a ajuda de manuscritos, documentos e monumentos antigos escritos em uma língua ou erguidos segundo princípios que eles não entendiam, e começaram a criar uma cultura artificial: começaram a imitar uma arquitetura de que só conheciam ruínas ou descricões em velhos escritos, faziam traduções vernáculas de línguas mortas a partir de traduções em outras línguas, tiravam conclusões delirantes, inventavam segredos perdidos inexistentes, tradições esotéricas perdidas… Como se sabe, esse processo, que se passou na Europa ali mais ou menos entre os séculos XIV a XVI, ganhou o nome de Renascimento. O Ocidente moderno principia ali.
O que é o Renascimento? Os europeus — mistura étnica confusa de germânicos e celtas, de itálicos e eslavos, que falam línguas híbridas, muitas vezes pouco mais que um latim mal falado, crivado de barbarismos, praticando uma religião semita filtrada por um equipamento conceitual tardo-grego, e assim or diante — descobrem a literatura e a filosofia gregas via os árabes. Refiguram o mundo grego, que não era o mundo grego (ou greco-romano) histórico, mas uma “Antiguidade clássica” feita de fantasias e projeções do presente. Erguem templos, casas, palácios, escrevem uma literatura que se refere privilegiadamente a esse mundo, uma poesia imitando a poesia grega, esculturas que imitam as esculturas gregas. Lêem Platão de modos inauditos. Enfim: inventam, e assim se inventam. Como diz Sahlins: pois é, quando se trata dos europeus, chamamos esse processo de Renascimento. Quando se trata dos outros, chamamos de invenção da tradição. E conclui: alguns povos têm toda a sorte do mundo.
A terceira dimensão, enfim, é a sociopolítica – a primeira era histórica (continuidade), a segunda era cultural (orientação positiva em relação ao fundo cultural); a terceira é sociopolítica. Ela diz respeito à decisão, manifesta ou simplesmente presumida, da comunidade se constituir como corpo socialmente diferenciado dentro da comunhão nacional — para usarmos essa linguagem empolada e hipócrita. Constituir-se como entidade socialmente diferenciada significa dar-se autonomia para estatuir e deliberar sobre sua composição, isto é, os modos de recrutamento e critérios de exclusão da comunidade. Estamos falando de coisas como “governança” (perdoem a má palavra) comunitária, modalidades de ocupação do território, regimes de intercâmbio com a sociedade envolvente, dispositivos de reprodução material e simbólica… Os índios têm, como diz a lei, direito a seus usos costumes e tradições. Ter direito aos usos e costumes significa ter autonomia para se governar internamente naquilo que não fira os princípios fundamentais da constituição nacional.
Estas reflexões são uma tentativa de criar uma definição a mais larga possível, que reconheça que a reposta à questão de quem é índio cabe às comunidades que se sentem concernidas, implicadas por ela. Não cabe ao antropólogo definir quem é índio, cabe ao antropólogo criar condições teóricas e políticas para permitir que as comunidades interessadas articulem sua indianidade. Nós antropólogos não somos sequer tribunal de apelação. Um caso pitoresco que me contam, dos caboclos da Serra de Baturité que viraram índios por conta de uma ONG de um norueguês e de um padre do Cimi, no meu entender, é um caso marginal, no sentido estatístico e no sentido conceitual. Pois e daí? eu diria. O que isso prova? Se aquela comunidade, de fato, é uma invenção “do mal” (porque pode ser uma invenção “do bem”) então paciência, vamos ver o que nós fazemos com isso; vamos ver, sobretudo, se eles se garantem.
Os antropólogos devíamos nos orgulhar do fato de que o Brasil de hoje está cheio de comunidades querendo ser indígenas. E devemos nos orgulhar, entre outras coisas, porque contribuímos para reavaliar, dar um outro valor, à noção de “índio”. Hoje a população urbana do país, que sempre teve vergonha da existência dos índios no Brasil, está em condições de começar a tratar com um pouco mais de respeito a si mesma, porque, como eu disse, aqui todo mundo é índio, exceto quem não é.
fonte: http://nansi.abaetenet.net/abaetextos/exceto-quem-n%C3%A3o-%C3%A9-eduardo-viveiros-de-castro